Veio de Itália com uma missão: mostrar a Portugal que há muito a fazer para reduzir o desperdício. Foi através do seu Instagram que muitos se depararam pela primeira vez com a expressão “dumpster diving”, a prática de salvar do lixo a comida que os supermercados deitam fora todos os dias.
Anna Masiello usa as redes sociais para mostrar que algo está mal quando traz do lixo quilos de comida e, no caminho para casa, vê pessoas sem abrigo na rua. E algo está igualmente mal quando, no supermercado, nós escolhemos a maçã perfeitinha em vez daquela que tem uma marca. A culpa, e a responsabilidade, é de todos.
À Peggada, fala sobre lixo, sobre como evitá-lo e sobre como dar-lhe uma nova vida. Está prestes a lançar uma linha de roupa feita de guarda chuvas que acabam abandonados na rua em dias de tempestade. Na R-Coat há casacos e chapéus de todos os tamanhos, porque a sustentabilidade também é fazer com que todos caibam num conceito que dá uma segunda vida ao que, para muitos, é lixo.
És uma italiana a viver em Portugal e a revolucionar a forma como encaramos a sustentabilidade. Conta-nos mais sobre ti.
Chamo-me Anna Masiello, tenho 27 anos e venho de Trieste, em Itália. Fica ao lado do Mar Adriático e de minha casa consigo mesmo ver o mar. Isso, a juntar ao facto de meu pai ser guarda florestal e a minha mãe assistente social, influenciou este meu trabalho na área da justiça climática e social.
Além disso, eu sempre gostei muito de línguas e estudei Tradução, ainda em Itália. Traduzi muita coisa, é certo, mas percebi que, principalmente na área do ambiente, não queria apenas traduzir o que os outros diziam, queria partilhar conteúdo meu. Foi aí que decidi que o mestrado já não seria em Línguas, mas sim em algo ligado ao ambiente, e que seria feito em Portugal. Fiz cá Erasmus e apaixonei-me pelo país. É aqui que me sinto em casa.
E acabou por ser cá que avançaste com este teu trabalho na área da sustentabilidade.
Sim. Quando me mudei para Lisboa, em 2017, frequentei um mestrado que se chama Estudos do Ambiente e da Sustentabilidade no ISCTE. Foi logo no início desse mestrado que vi um vídeo da Lauren Singer, fundadora da Trash is For Tossers, uma plataforma que luta pela redução do desperdício. Ela mostrava uma frasquinho com lixo e fiquei mesmo curiosa sobre o porquê desse video ter milhares de visualizações. Aquele frasquinho era, afinal, todo o lixo que ela produzia num ano e foi aí que me deparei, pela primeira vez, com a expressão “zero waste”.
Foi um ponto de viragem para ti?
Completamente. Foi aí que percebi que havia muita coisa que podia fazer para reduzir o meu desperdício. Para isso comecei a analisar o meu dia a dia e cheguei até a tirar fotografias e fazer vídeos de todas as vezes que ia deitar o meu lixo ao ecoponto de maneira a perceber o que estava a deitar fora.
O teu trabalho começou a ser mais conhecido quando partilhaste vídeos e fotografias do que trazias do lixo. Explica-nos, o que é dumpster diving?
Dumpster diving ou respigar, em português, significa reaproveitar aquilo que os supermercados deitam fora ao fim do dia.
Lembras-te da primeira vez que o fizeste?
Sim. A primeira vez fui com uma amiga e encontramos caixotes de supermercado cheios de comida. Foi tão chocante para mim que fiz daquilo um hábito, não por necessidade, mas para partilhar mais conteúdo sobre o tema e para pôr as pessoas a falar sobre o tema. Felizmente, não foi chocante só para mim e chegou a muitas pessoas.
O que encontraste no lixo nessa primeira vez?
Nós fomos com um daqueles carrinhos de compras com rodas mas, claramente, não estávamos preparados para a quantidade de comida que íamos encontrar. Num dos caixotes estava um saco preto daqueles do lixo cheio de cocos e de alho francês. Era tão pesado que trazê-lo comigo deixou-me com dores nos braços o resto da semana.
Além disso, a caminho de casa passamos, carregadas de comida, por muitos sem abrigo. Pareceu-me muito incoerente. Fiquei tão chateada com o sistema. Como é que isto podia acontecer? Como é que os supermercados podiam deitar tudo aquilo fora e haver tanta gente sem ter o que comer?
A culpa será só dos supermercados?
Não, de todo. As pessoas continuam a preferir a maçã perfeitinha do que aquela que tem uma marca. Todos temos que mudar.
Foste também acusada de fazer algo ilegal ao trazer comida do lixo dos supermercados. Quais são as leis para o dumpster diving em Portugal?
Antes de tornar tudo isto público, falei com uma advogada que me explicou que se o caixote do lixo fica na via pública já não é propriedade do supermercado e, por isso, não é ilegal. O problema é que foram muitos os supermercados que, depois desta má publicidade, passaram a deixar os caixotes fechados ou no interior, impedindo que as pessoas vão lá.
Achas que é algo que todos devíamos experimentar?
Experimentar talvez, mais não seja um dia abrir um caixote do lixo de um supermercado para ter uma noção da realidade. O dumpster diving é bom para abrir consciências, mas não nos podemos esquecer que há quem o faça por necessidade, o que faz disto um assunto muito sensível. Para muitos é algo que fazem às escondidas, algo que não é digno, e só para alguns é que é algo que vale a pena partilhar no Instagram.
Qual foi a coisa mais impressionante que encontraste no lixo?
Aquilo que mais me chateava era encontrar carne e peixe. Eu não sou vegan, mas ver animais que morreram para alimentação e que essa comida acaba no lixo não faz sentido.
Tornaste-te também uma voz para o consumo consciente de roupa. Já usas roupa em segunda mão há quanto tempo?
Desde o início desta minha jornada mais sustentável, há uns três anos.
Lançaste até um projeto que transforma lixo em roupa. Fala-nos do R-Coat.
Todos os meus projetos servem para reduzir o desperdício e este é mais um. Quando me mudei para Lisboa, fui-me apercebendo que sempre que chovia eram muitos os guarda-chuvas partidos postos no lixo ou abandonados na rua que acabariam incinerados. Comecei a levá-los para casa e quando já tinha uns trinta em casa tive que começar a pensar uma solução para os aproveitar. Pesquisei online e percebi que já havia mais gente a fazer acessórios a partir de guarda-chuvas, mas não roupa. Achei que seria um desafio interessante. Problema? Eu não percebia nada de costura e tive que passar muitas horas no Youtube a ver vídeos de costura para totós. Comprei uma máquina de costura e fiz o meu primeiro casaco, muito simples mas longe de ser perfeito.
O passo seguinte foi encontrar pontos para que as pessoas entregassem guarda chuvas que encontravam na rua e, atualmente, já existem mais de 30 no país inteiro.
Como funciona o processo?
As pessoas podem deixar os guarda chuvas em qualquer um dos pontos de recolha. Depois, acabam por nos chegar a Lisboa e transformados em casacos, chapéus e outros acessórios por uma equipa de cinco costureiras num atelier em Alenquer.
Quando é o lançamento oficial?
Final de maio. Tenho os produtos agora à minha frente e estão incríveis! Vamos vender apenas online, mas já falamos com a Maria Granel para ter lá alguns casacos para que as pessoas possam experimentar e conhecer de perto a marca.
Uma das coisas que queremos ter é casacos que sirvam a toda a gente e, por isso, estamos a trabalhar em modelos de vários tamanhos, para sermos uma marca inclusiva.
Que peggada queres deixar neste planeta?
O mais importante para mim é mostrar aos outros que, se eu consigo fazer mais pelo planeta, qualquer pessoa consegue. A minha missão é empoderar os outros, é mostrar que todos podemos fazer mais pelo planeta.