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Eunice Maia: “Já tive muitos momentos de ecoansiedade”

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Podíamos apresentar a Eunice Maia como a proprietária da primeira mercearia biológica a granel em Portugal. Mas isso seria muito redutor.

A Eunice Maia reune em si uma rede de influência que serve de agregador a todos os que se preocupam com o planeta. Dá aulas, palestras, ensina crianças e adultos, escreve livros, dá dicas e tem sempre espaço para quem quer juntar-se a esta comunidade de amor à sustentabilidade. À frente da Maria Granel, a tal primeira mercearia biológica a granel do país, fala à Peggada sobre a luta que trava contra as burocracias e a vontade que tem de fazer sempre mais.

Apesar de o teu mundo agora ser outro, a verdade é que tens um passado muito ligado ao consumismo. Como é que uma viciada em compras aprende a ser sustentável?
Boa pergunta (risos). Não te sei dizer a fórmula, porque foi uma transição bem longa e lenta e que ainda está a acontecer. É uma caminhada, mas aconteceu muito naturalmente. Começou pelo lado da comida, até porque no meu caso esteve ligado ao nosso projeto, a Maria Granel. Foi aí que aprendi a reabastecer-me e a escolher o stock. Passei a ir mais a mercados biológicos e acabei por valorizar mais esta relação de proximidade com os produtores. Quis passar a aceder ao ciclo completo do produto, e isso acabou por contagiar a forma como via outros produtos, seja na cosmética ou na roupa. Comecei a colocar questões que dantes nem me passavam pela cabeça. A partir do momento que tens noção do impacto que tem a forma como compras, passas a querer fazer diferente.

Ainda que a Maria Granel seja, hoje em dia, uma meca do comércio sustentabilidade, a verdade é que nasceu apenas como um negócio.
A Maria Granel nasceu na cabeça do meu marido como uma ideia de negócio, é um facto, e como uma necessidade que ele detetou no mercado. Mas diria que na minha cabeça nunca foi só um negócio. À medida que fomos avançando, no meu caso principalmente, fui confrontada com duas realidades: o desperdício alimentar e a forma como tratamos os nossos resíduos. Estes dois aspetos foram-nos levando para algo mais do que um negócio. E ainda que pareça idílico, a verdade é que nos sentíamos longe das nossas raízes e a Maria Granel, apesar de ser uma ideia de negócio, é uma ideia de negócio sempre comprometida com essas raízes. A ideia de proximidade e de afetos sempre foi uma prioridade para nós.

Quiseste trazer o que tinham, enquanto pessoas que vêm de zonas rurais, para o centro de Lisboa.
Exatamente, e acho que isso se vê nas nossas lojas, Sentes mesmo que é uma aldeia dentro da cidade. Quisemos recuperar uma ideia antiga, a da mercearia de bairro, que faz parte do imaginário bem português.

Para quem não conhece a Maria Granel, agora já presente em Alvalade e Campo de Ourique, o que se pode encontrar lá?
São mercearias biológicas, com produtos alimentares e também, desde 2016, com acessórios úteis para várias áreas da casa e do dia a dia. Todos os produtos estão organizados por famílias: quem entra na loja, logo à entrada, encontra as especiarias, os temperos e as ervas aromáticas, depois os chás e infusões, e depois uma parede com os produtos com mais procura, como os frutos secos e os cereais de pequeno-almoço. Temos leguminosas, misturas para refeições fáceis de fazer, sempre vegetarianas, chocolates, algas, gomas, bolachas. São centenas de produtos. E ainda temos a parte da cosmética, da higiene e dos detergentes a granel.

Eunice Maia

Foi a Maria Granel que te ensinou a ser sustentável?
Ah, sem dúvida. Foi a Maria Granel e também as pessoas e os projetos com os quais me fui cruzando graças à Maria Granel.

O que é que há de ti na loja?
Há muita coisa. Eu diria que — e mais uma vez é o meu lado idealista a falar mais alto —o meu coração está todo lá. Fomos nós que escolhemos as cores, os materiais, a iluminação, o pormenor da transparência que eu sempre quis ter e que me levou a escolher armários de rede para que as pessoas possam ver o que há dentro, por exemplo. Tudo foi pensado para ser uma experiência, e não só uma ida à mercearia. Até a própria equipa reflete esta ideia de afeto, que acolhe as pessoas como nas antigas mercearias.

Lembras-te da tua primeira mudança sustentável?
Lembro-me bem. Aconteceu na cozinha e na forma como a minha despensa estava organizada. Parece óbvio, tendo em conta que tenho uma mercearia a granel, mas comprar a granel foi mesmo a primeira mudança. Depois lembro-me de uma grande vitória pessoal, que tem que ver com a roupa. Eu era muito consumista e gastava mesmo muito dinheiro em roupa, mas percebi que o que tinha bastava-me. Lembro-me de ter um vestido para os casamentos e passar a assumir isso. Nesses dias, as pessoas querem-nos a nós presentes e não o vestido. Também fiz mudanças importantes na casa de banho, desde passar a usar o copo menstrual, até optar por pensos menstruais reutilizáveis.

  Eunice Maia

E a última mudança?
Não é propriamente uma mudança, mas foi algo que me deu muito prazer, principalmente por ver que resulta: a compostagem. Faço em casa, mas vou agora passar a fazer de forma comunitária, aproveitando o programa Lisboa a Compostar, da Câmara Municipal. Estou também a tentar mudar a minha mobilidade e a torná-la mais suave e com menor impacto.

Vês sempre algo que podes fazer melhor?
Sempre, todos os dias vejo algo que posso fazer melhor! Na Maria Granel estamos focados na redução do desperdício, mas queremos convergir esforços noutras áreas. A mobilidade, como já falei, ou a energia. Temos essa responsabilidade enquanto projeto.

Como é lidar com a frustração de não poder fazer tudo?
Já tive muitos momentos de ecoansiedade, muitas vezes associado à loja. Não deixamos de produzir desperdício e às vezes é preciso respirar fundo e perceber que todos somos humanos e imperfeitos. O que me dá equilíbrio é centrar esforços naquilo que queremos fazer e no que é possível fazer, e nunca desistir. Punirmo-nos por não fazermos tem um impacto mais negativo do que catalizador. É por isso que, na sustentabilidade, acredito muito nas pequenas vitórias, nos pequenos progressos.

Como é gerir um negócio com tantas particularidades?
Foi muito difícil no início, principalmente por ser território desconhecido. O conceito não é novo, mas o desafio está em trazê-lo do passado para o presente e revesti-lo de futuro. Obviamente que há sempre desafios, mas diria que foi bastante mais difícil no início. Depois, quando tens a tua missão bem estruturada, em que a verdade está lá, as decisões são mais claras. É desafiante, mas clarifica quando sabes qual o rumo a tomar.

A Maria Granel já são agora duas lojas, adaptadas também às vendas online. Mas e de futuro, o que podemos esperar?
Aqui falo não só pela Maria Granel, mas pelo nosso comércio nacional, até porque acredito que este compromisso de circularidade vai estender-se a várias entidades, inclusive a grandes superfícies. Ainda que venham aí surpresas na loja, a verdade é que já temos à venda os produtos que gostávamos de ter. Por isso, a grande mudança que gostava de ver acontecer era na legislação, de maneira a que seja mais flexível. Queria também ver uma fiscalidade que fosse impulsionadora destes comportamentos mais sustentáveis, ou seja, que houvesse mais incentivos para que as empresas pudessem fazer esta transição para o granel. O problema é que a nível político há muitos sinais contraditórios. Temos um governo comprometido no combate aos descartáveis, mas é o mesmo governo que aprova legislação sobre pré-embalagens.

A legislação é o teu principal obstáculo na hora de fazer mais?
Meu e de toda a gente que quer fazer mais pelo granel. Temos um decreto-lei que impõe que o arroz seja embalado, por exemplo. E o mesmo acontece com alguns tipos de açúcar e farinhas, ou com o azeite e o vinagre.

O que nem toda a gente sabe é que continuas a ser professora. Estes dois mundos são para manter?
Sim, o ensino é algo que me apaixona, além da Maria Granel. Já reduzi muito a carga horária, mas quero continuar, nem que seja com uma só turma. Ser professora é ter um lugar privilegiado, não só de observação, mas também de contributo para o futuro. No ensino nunca se envelhece. Estamos sempre em constante diálogo com os agentes transformadores do futuro. Fazer parte disso é o melhor de ser professora.

És professora de português. Mas acabas também por passar conhecimento sobre sustentabilidade?
Tenho sempre essa preocupação, mas eu sou extremamente tímida e reservada. Nunca falo da Maria Granel, mas há miúdos que descobrem e me falam disso. Eu fico muito vermelha, e nunca sei como reagir [risos]. Mas sim, mudou muito em mim como professora, seja nos textos que escolho ou nos trabalhos que solicito. Ainda que haja textos fundamentais que analisamos e são incontornáveis e dos quais não posso fugir, tento que tenham sempre uma ponto com o mundo, com o presente, e principalmente como futuro. Para que sejam, lá está, agentes transformadores do futuro.

E também já escreveste um livro, pondo também em prática os conhecimentos de escrita. São vários mundos que se juntam?
Sim, o livro foi uma tentativa de entregar às pessoas um guia muito prático e, ao mesmo tempo, um diário muito pessoal de mudança, com todas as frustrações e imperfeições. O livro é centrado na redução do desperdício e na prevenção de geração de resíduos em casa. Tentei que fosse muito prático e, por isso, está cheio de dicas, sugestões e receitas. E tem também um lado estético muito forte, com fotografias e ilustrações, tentando também no livro criar essa rede de laços que fui criando. Estão lá textos do Rodrigo Sabatini, por exemplo, e projetos com os quais me identifico.

Que pegada esperas deixar neste planeta?
Agora que tenho mais consciência de que é preciso mitigar essa pegada ecológica, espero contribuir para que seja o mais reduzida possível. Acredito muito que a sustentabilidade é o amor que temos aos outros, o amor a nós e o amor ao mundo. Espero deixar uma pegada de afetos, porque se for de afetos é necessariamente de sustentabilidade.

 
?  Gustavo Figueiredo
Eunice Maia
Autor: Marta Cerqueira

Marta Cerqueira é minhota e vegetariana. A sorte é que vive em Lisboa, onde há mais tofu do que sarrabulho. É jornalista há mais de 15 anos, os últimos dos quais a escrever sobre comida e sustentabilidade. Agora, já fora das redações, continua a escrever sempre que pode, seja em revistas, diários, post its, ou na sua página de Instagram, que usa para partilhar uma vida que se divide entre ser mãe-pessoa-foodie-viajante. Ainda assim, criou a Peggada para poder escrever sobre o que não cabe numa revista, num diário, num post it ou no Instagram: um mundo melhor.

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